Quem vigia os vigilantes? A questão da
responsabilidade dos juízes
“Ainda há juízes em Berlim”, e
lá eles respondem por seus atos".
lá eles respondem por seus atos".
Recebi de um amigo, que é promotor de Justiça,
texto que está circulando na internet e, sobretudo, nas redes sociais (onde a
autoria sempre se perde), intitulado “Ainda há juízes em Berlim, mas não por
muito tempo...”, de Eduardo Perez, juiz de Direito do TJ-GO. Não vou discutir
aqui seus equívocos, mas quero aproveitá-lo como gancho para expor meu
argumento: sim, “ainda há juízes em Berlim”; e lá, de há muito, todos eles
respondem — administrativa, civil e penalmente — por seus atos.
A Lei Alemã dos Juízes (Deutsches Richtergesetz)
— na versão publicada em 19 de abril de 1972, com as modificações do
parágrafo 62, inciso 9, dadas pela Lei de 17 de junho de 2008 —
estabelece, por exemplo, a “revogação da nomeação do cargo” (parágrafo 19), nos
casos de crime, fraude, corrupção etc., e ainda diversas “medidas disciplinares”
(parágrafo 64).
Como se isso não bastasse, lá em Berlim (e em toda
a Alemanha), há também o crime específico previsto no parágrafo 339 do Código
Penal (Rechtsbeugung): “O juiz, ou qualquer outro funcionário público ou
juiz arbitral, que seja culpado de direcionar o Direito para decidir com
parcialidade contra qualquer uma das partes será punido com pena privativa de
liberdade de um a cinco anos” (tradução livre).
A título meramente ilustrativo, cumpre referir
importante decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, em 2003, apontando
a necessidade de se aumentar ainda mais a responsabilidade dos juízes alemães
por erros judiciários (veja aqui).
No restante da Europa, como se sabe, a
legislação vigente segue a mesma linha. Não vamos nos esquecer que, na Espanha,
ao julgar o famoso caso Peláez, Crespo y Correa vs. Garzón,
em 2012, o Tribunal Supremo condenou o conhecido juiz espanhol pela prática de
prevaricação judicial à perda do cargo e inabilitação para função pública pelo
período de 11 anos, em razão de abuso consistente na determinação de escutas
ilegais no caso Gürtel, que envolvia dirigentes do Partido Popular, em
Valência, e seus advogados.
E, aqui, como é? Na esfera administrativa, temos a
vantajosa pena de aposentadoria compulsória com vencimentos integrais (e acima
do teto!); na esfera civil, a responsabilidade pessoal permanece regressiva,
tal qual o modelo adotado pelo CPC 39, que se resume às hipóteses de dolo e
fraude, à revelia do disposto no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição; na
esfera criminal, não há tipos penais próprios, enquanto aqueles da lei de abuso
de autoridade vigente são, na prática, de muito difícil enquadramento (e todos
sabem o porquê).
Para completar, até o momento ninguém foi
penalizado, em nenhuma esfera. Nem pelas escutas ilegais nem pelas provas
obtidas ilicitamente e tampouco por vazar informações sigilosas à imprensa.
Isso é fato. O único que se deu mal, por aqui, foi o Protógenes (aquele
delegado federal da operação Satiagraha), que se exilou na Suíça e agora
ingressou com revisão criminal alegando falta de isonomia!
Sed quis
custodiet et ipsos custodes?
Essa célebre frase de Juvenal, poeta latino do
século II, traduz uma das grandes indagações dirigida a Sócrates, na República,
de Platão. Ela também sintetiza o núcleo da reflexão desenvolvida por Mauro
Cappelletti a respeito da responsabilidade dos juízes, em 1982, ao elaborar o
relatório geral das discussões sobre o tema “The role and functions of legal
professions and judicial responsibility”, durante o XI Congresso Mundial da
Academia Internacional de Direito Comparado, realizado em Caracas, na
Venezuela. Foi esse importante relatório que deu origem ao artigo intitulado Who Watches the Watchmen?, A
comparative Study on Judicial Responsability, que resultou na
posterior publicação da clássica obra Giudici irresponsabili?: studio
comparativo sulla responsabilità dei giudici, de 1988, traduzida para o
português logo em seguida (Juízes irresponsáveis, SaFe, 1989).
Pois bem. A responsabilidade dos juízes (e,
igualmente, dos promotores e procuradores) é uma questão que atravessa a
história do Direito, mas que ocupa um lugar central somente na arquitetura do
paradigma do Estado Constitucional de Direito. As razões para isso são bastante
óbvias. As atuais democracias estruturam-se sobre um sistema normativo de
diretos e garantias que pressupõe limites e vínculos à atuação dos poderes
públicos e privados. Todo poder deve ser controlado, não havendo mais espaço
para blindagens e imunidades.
Em sua obra, Cappelletti parte da premissa segundo
a qual um poder sem responsabilidade é incompatível com um sistema democrático.
Com isso, ele critica os dois princípios que, historicamente, elidiram a
admissão da responsabilidade judicial — the king can do no wrong e res
judicata facit jus —, demonstrando que, no paradigma jurídico que surge a
partir do segundo pós-guerra, ambos são igualmente inaceitáveis.
Para combater a ideia de que o Estado, sendo fonte
da produção normativa, não cometeria atos ilegítimos, Cappelletti resgata uma
compreensão de responsabilidade vigente na democracia grega: “Ninguém
que, de qualquer modo, exerça uma função pública, é isento do dever de prestar
contas da própria ação”.
Entre os conhecidos modelos de responsabilidade dos
juízes — num extremo, a sujeição ao controle exercido como privilégio do
governante e, noutro, o corporativismo isolacionista fundado na
absolutização da independência —, Cappelletti propõe um modelo de
responsabilização por meio do qual busca combinar “razoável medida de
responsabilidade política e social com razoável medida de responsabilidade
jurídica”, de um lado, garantindo que a magistratura e seus membros possuam
certo grau de independência e evitando que atuem como subordinados dos poderes
políticos, dos partidos políticos e de outras organizações sociais e, de outro
lado, eliminando os riscos do isolamento corporativo e “a anarquia incontrolada
e irresponsável dos membros individuais do Judiciário”.
Em suma, num Estado que se diz Democrático de
Direito, deve haver uma relação diretamente proporcional entre o poder e a
efetiva responsabilidade dos juízes, mantendo-se um equilíbrio entre controle e
independência.
Responsabilizar,
sim; agora, sim; mas de qualquer modo, isso não
De pronto, quero deixar claro que não vejo nenhum
problema em responsabilizar criminalmente — seja por abuso de autoridade ou o
nome que se pretenda dar — os membros do Poder Judiciário e do Ministério
Público. Também acredito que, sim, o momento é oportuno, tal qual sustentou o
ministro Gilmar Mendes, para se atualizar a legislação em vigor, elaborada na
década de 1960, o que explica parte de sua proposital inefetividade. Assim como
também já passou da hora, sobretudo quando o tema é corrupção, de se abrir a
caixa-preta dos supersalários e extinguir, definitivamente, todos os privilégios.
Isso não significa, contudo, que esse importante
debate democrático pudesse ser subtraído da sociedade, incluído no pacote das
medidas anticorrupção e votado durante a madrugada. Também não autoriza que se
possa utilizar da péssima técnica legislativa aplicada. E tampouco legitima que
se empreguem tipos penais abertos.
Na coluna Limite Penal, publicada
ontem (2/12), Alexandre Morais da Rosa já ilustrou, com precisão, os acertos e
desacertos relativos às emendas ao PL 4.850/2016, aprovado
pela Câmara dos Deputados, abordando — tecnicamente — os problemas que
envolvem os dispositivos que trataram da responsabilização desses agentes
políticos.
De toda maneira, o modo como ocorre o jogo na arena
política é conhecido de todos. Se o projeto for aprovado no Senado nos mesmo
moldes em que foi aprovado pela Câmara dos Deputados — o que me parece
improvável — e, assim, tornar-se lei, então restará aos legitimados questionar
sua constitucionalidade pelas vias existentes. Esse é o único caminho jurídico,
gostem ou não.
A chantagem esboçada pelos membros da força-tarefa
do MPF — que ameaçaram abandonar a operação "lava jato" — é,
além de ridícula e infantil, ilegal! Eles poderiam deixar o parlamento
trabalhar, assim como eles gostariam que o parlamento os deixassem fazer. E, se
realmente renunciarem (o que duvido), deverão ser responsabilizados, por
prevaricação, inclusive, como muitos juristas já sinalizaram.
Por
favor, tragam o tal garantismo de volta!
Há, por fim, um elemento muito curioso em tudo
isso. Os argumentos até anteontem rotulados pejorativamente de garantistas,
agora, passam — convenientemente — a ser invocados por parcela dos membros do
Poder Judiciário e do Ministério Público. Basta, para tanto, ver o resgate e a
força que a legalidade constitucional assumiu em muitos (não todos, é
verdade) dos discursos e pronunciamentos que marcaram as manifestações de
repúdio à aprovação do PL 4.850/2016. A lição que fica, na iminência da
responsabilização de todos — políticos, membros do Judiciário, membros do
Ministério Público e, ainda, cidadãos comuns — é que o direito de defesa e as
garantias constitucionais são inegociáveis. A preocupação dos juízes e
promotores é legítima. Por quê? Porque eles conhecem a irracionalidade do
sistema e sabem — como ninguém — as barbaridades que são praticadas,
diariamente, nos foros e tribunais desse país.
FONTE: Consultor Jurídico. conjur.com.br
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