quinta-feira, 3 de maio de 2012

É Constitucional a escolha do Defensor Geral do Estado?


Inconstitucionalidade do art. 99 da LC nº 80/94 ao regulamentar a escolha do Defensor Geral ESTADUAL
O objetivo do presente texto é discutir os limites dos termos constitucionais “normas gerais” no art. 134 em confronto com a “autonomia dos Estados” prevista no art. 25, ambos da CF, analisando a inconstitucionalidade do art. 99 da LC nº 80/94 (Lei Orgânica da Defensoria Pública).
Sem dúvida é importante assegurar aos carentes o direito de acesso ao Judiciário, bem como discutir a forma de se efetivar este direito, ressaltando que a assistência jurídica não é atividade privativa do Estado, embora seja essencial, assim como as outras de assistência como a médica, social e outras, considerando o relevante papel da Defensoria, a qual tem uma atividade, não exclusiva, de assistir ao cliente carente e que este limite entre proteger e controlar é muito próximo, como leciona Michael Foucault. Logo, é preciso muita cautela ao se permitir uma espécie de substituição processual do carente, pois o cliente neste caso perde o controle da ação. De fato, é como se ficasse apenas na arquibancada do jogo processual e não no campo.
A rigor, a Constituição Federal não define a forma de escolha do Defensor Geral. Aliás, em momento algum do texto constitucional existe o termo “Defensor Geral”. Logo, a Constituição não estabeleceu que o Defensor Geral fosse escolhido pelos integrantes da carreira e nem eleito dentre os próprios integrantes da carreira. O fato de constar apenas recentemente que é uma instituição autônoma na Constituição Federal, não torna constitucional a forma restritiva de escolha do cargo de chefia prevista na LC nº 80/94, principalmente para os Estados através de uma Lei Federal, pois vários órgãos públicos com autonomia têm a chefia escolhida livremente pelo Chefe do Executivo.
Por oportuno, transcrevem-se os termos da norma constitucional:
“Art. 134. ......
§ 1º Lei Complementar organizará a Defensoria Pública da União e do Distrito Federal e dos Territórios e prescreverá normas gerais para sua organização nos Estados, em cargos de carreira, providos, na classe inicial, mediante concurso público de provas e títulos, assegurada a seus integrantes a garantia da inamovibilidade e vedado o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais (renumerado pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
§ 2º Às Defensorias Públicas Estaduais são asseguradas autonomia funcional e administrativa e a iniciativa de sua proposta orçamentária dentro dos limites estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias e subordinação ao disposto no art. 99, § 2º” (incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).
Como se observa acima a Constituição Federal não definiu a forma de escolha do Defensor Geral, em especial para os Estados. Assim, a Lei Complementar Federal extrapolou a norma constitucional e limitou as regras para os Estados. Nesse sentido, cita-se os trechos da Lei impugnada:
“Art. 99. A Defensoria Pública do Estado tem por chefe o Defensor Público-Geral, nomeado pelo Governador do Estado, dentre membros estáveis da carreira e maiores de 35 (trinta e cinco) anos, escolhidos em lista tríplice formada pelo voto direto, secreto, plurinominal e obrigatório de seus membros, para mandato de 2 (dois) anos, permitida uma recondução” (redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009).
A questão agrava-se ainda mais em se tratando dos Estados, pois a Constituição Federal permitiu apenas que a Lei Complementar tratasse de “normas gerais”, logo não caberia a uma lei federal definir como seriam os critérios de seleção do Defensor Geral dos Estados, pois isto viola frontalmente o pacto federativo. Da mesma forma que cabe aos Estados definir a forma de escolha dos seus Advogados Gerais/Procuradores Gerais, também cabe aos mesmos definir a forma de seleção dos Defensores Gerais.
A autonomia dos Estados é princípio sensível do pacto federativo e está expressa no art. 25 da Constituição Federal, além de outros artigos. Como se observa do texto referido no caput do art. 25: “os Estados organizam-se pelas Constituições que adotarem”.
Apenas a Constituição Federal poderia ter delimitado a forma de escolha do Defensor Geral para os Estados, e se desejasse, mas esta não foi a vontade do constituinte. Portanto, não cabe à Lei definir a forma de escolha do Defensor Geral, muito menos uma Lei Federal, ainda que Complementar, estabelecer regras para os Estados, pois dentro da autonomia organizacional estadual.
A Constituição Federal também não define que o Defensor Geral deve ser votado ou que tenha mandato.
No entanto, nada impede que os Estados voluntariamente adotem o formato de escolha do Defensor Geral previsto na LC nº 80/94, mas não podem ser obrigados, como vem prevalecendo.
Portanto, seria importante que o Estado pudesse optar por um formato de escolha mais democrático, inclusive concedendo direito de voto e até de se candidatar aos carentes ou entidades ligadas aos mesmos. Não ficando a Defensoria fechada para que apenas seus membros pudessem escolher e candidatar ao cargo de Defensor, o que gera exclusão até mesmo interna, pois os servidores de apoio não votam, nem podem se candidatar.
Esta forma de seleção pode gerar conflitos de interesse com a sociedade, como se observa em entidades associativas criticando a postura da Defensoria do Rio de Janeiro, ao alegarem aparelhamento estatal da mesma, inclusive com moção pública de repúdio publicada por entidades ligadas aos movimentos populares, as quais passaram a defender outro modelo de assistência jurídica, conforme site defensoriapopular.wordpress.com.
Considerando conhecida a luta de classes e a proposta da assistência jurídica de reduzir desigualdades sociais, não se pode ter um modelo de votação verticalizado e limitado a uma categoria para a escolha do Defensor Geral. Logo, os Estados podem por optar também pela livre escolha do Defensor Geral, com ou sem mandato, ou então, estabelecer um modelo de votação com ampla participação de outros setores ligados aos carentes, sociais ou estatais, além de poder ampliar a legitimidade para se concorrer ao cargo de Defensor Geral.
Caso contrário, se manter este sistema de votação fechado e sindicalizado para escolha do Defensor Geral acabará por ser um modelo de controle e não de assistência.
O fato de a Defensoria ter autonomia não significa que o Defensor Geral deva ser escolhido apenas entre os Defensores e por voto destes. Afinal, as autarquias têm autonomia, e não se adota este modelo restritivo de escolha, inclusive poderia a Lei Estadual autorizar ao Governador escolher um servidor de carreira da própria Defensoria e que não seja Defensor, mas a Lei Complementar Federal limitou indevidamente.
A Assistência jurídica insere-se no conceito de assistência pública previsto no art. 23, II, da Constituição Federal, logo é atividade de cunho privado, mas exercido pelo Estado como ação social complementar.
Este modelo de escolha, com votação pelos membros, foi previsto apenas para o Ministério Público Estadual e na Constituição Federal (art. 128, § 3º), nem mesmo o Ministério Público Federal adota o modelo de escolha do PGR em lista pelos membros do MPF, pois neste caso a CF apenas restringe que o Chefe do MPU deverá ser integrante da carreira do MPF, mas esta exigência está na Constituição Federal e não em Lei.
Entendimento contrário permitiria que se decidisse por lei que os Ministros do STF pudessem ser escolhidos mediante lista prévia tríplice a ser remetida ao Presidente da República, ou também com relação ao Procurador Geral da República. Contudo, no caso do Procurador Geral da República nem há limitação de reconduções em razão da ausência de regra constitucional, logo não é crível que a Lei da Defensoria limite o número de reconduções e até mesmo que crie mandato sem previsão constitucional.
Também não pode a Lei Orgânica da Magistratura prever eleição para escolha para os dirigentes dos Tribunais com participação de todos os juízes sem previsão legal.
Para corroborar, citamos o julgamento do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 927-3/RS, de relatoria do Ministro Carlos Velloso, o qual expôs com maestria o tema das normas gerais no tocante a licitações:
“A Constituição de 1988, ao inscrever, no inc. XXVII do art. 22, a competência privativa da União em legislar sobre normas gerais de licitação, pôs fim à discussão a respeito de ser possível ou não à União legislar a respeito do tema, dado que corrente de doutrina sustentava que ‘nenhum dispositivo constitucional autorizava a União a impor normas de licitação a sujeitos alheios à sua órbita.’. [...] A CF/88, repito, pôs fim à discussão, ao estabelecer a competência da União para expedir normas gerais de licitação e contratação (art. 22, XXVII). Registre-se, entretanto, que a competência da União é restrita a normas gerais de licitação e contratação. Isto quer dizer que os Estados e Municípios também têm competência para legislar a respeito do tema: “a União expedirá as normas gerais e os Estados e Municípios expedirão as normas específicas. Leciona, a propósito, Marçal Justen Filho: ‘como dito, apenas as normas gerais são de obrigatória observância para as demais esferas de governo, que ficam liberadas para regular diversamente o restante’.”
Ainda exemplificando, cita-se que a AGU também tem status constitucional e seus membros são selecionados mediante concurso, além de serem organizados em carreira, mas nem por isto uma Lei Federal poderia definir de forma restritiva a forma de seleção para Advogado Geral a membros de carreira e muito menos escolhido por membros de Carreira. Aliás, as normas estaduais que estipulavam esta restrição para escolha de Advogado Geral (Procurador Geral do Estado) foram consideradas como inconstitucionais pelo STF. A PGFN também tem autonomia e nem por isto os Procuradores escolhem o seu Procurador Geral.
Dessa forma, o papel de assistência jurídica prestado pela Defensoria, o qual é uma assistência pública relevante, mas sem poder de polícia, por se tratar de atividade assistencial, deve-se adequar à necessidade local do Estado, sendo importante que a LC nº 80/94 obedeça aos ditames constitucionais sem limitar a atividade do Executivo.
Portanto, o art. 134, § 1º, da CF não permite à Lei Complementar Federal definir critérios para a escolha do Defensor Geral, pois esta regra particular extrapola o conceito de “normas gerais”.
Como leciona José Afonso da Silva, na obra Curso de Direito Constitucional Positivo, 24. ed, p. 609: “a auto-organização é, pelo visto, o primeiro elemento da autonomia constitucional e se concretiza na capacidade de dar-se a própria Constituição.”
Nesse sentido, quando a Constituição Federal fala em normas gerais no seu artigo refere-se apenas à questão da atribuição de assistência jurídica aos carentes e não à forma de escolha do Defensor Geral Estadual, pois isto é norma especial, específica e local, o que extrapola o conceito de “generalidade”.
Também não é recomendável que a Constituição Federal crie “normas gerais” apenas para os Estados e excluir os Municípios, pois isto seria uma afronta ao pacto federativo. Pior ainda, se “as normas gerais” na Lei descem ao detalhamento de escolha para o Defensor Geral Estadual.
Por outro lado, o Defensor Geral atua, em tese, na esfera administrativa de gerenciamento da Instituição e ainda pelo viés constitucional a Defensoria pode somente prestar assistência jurídica, ou seja, apenas podem atuar o Defensor Geral e Defensores pela via da representação processual, representando a parte e não sendo a parte (substituição processual).
Considerando que o cargo de Defensor Geral tem status de secretário de Estado, apenas a Constituição Federal, em sua redação originária, poderia delimitar a forma de escolha, o que não o fez. Logo, cabe a cada Estado definir a forma de escolha, não podendo o art. 99 da LC nº 80/94 delimitar a escolha.
Oportuno citar também o festejado José dos Santos Carvalho Filho, in Manual de Direito Administrativo, 11. ed., p. 159:
“É importante anotar, todavia, que a referida competência se limita à edição de normas gerais, e sendo assim, às demais entidades da Federação foi conferida a competência para editar normas específicas. Na verdade, nem sempre tem sido fácil identificar quando um dispositivo encerra norma geral ou específica, e talvez por essa razão muitos Estados e Municípios adotem a Lei nº 8.666/93, deixando, pois, de criar normas específicas, para evitar o risco de eventuais impugnações.
Por outro lado, muitas objeções têm sido levantadas em relação a alguns dispositivos da lei federal, os quais, segundo o entendimento de diversos estudiosos, não contêm regras gerais, mas sim específicas. De fato, se o dispositivo da lei federal contiver norma específica, estará fatalmente em contrariedade com a Constituição Federal, e em consequência, maculado de vício de inconstitucionalidade.”
Conclusão:
Dessa forma, permaneceria o texto legal com redução nos seguintes termos da LC nº 80/94, sendo os demais trechos afastados do ordenamento jurídico:
“Art. 99. A Defensoria Pública do Estado tem por chefe o Defensor Público-Geral, nomeado pelo Governador do Estado.
Cabendo à Legislação Estadual definir:
1) quem pode ser Defensor Geral;
2) se terá mandato;
3) se será votado ou escolhido pelo Governador ou por outro ente;
4) quem pode votar.
Esta medida adequaria a Instituição à realidade local do Estado, inclusive para se definir o mais importante, isto é, o critério para se definir a carência econômica, o que tem sido colocado em segundo plano atualmente e também evitaria que a Defensoria se desvirtuasse para interesses da classe média e alta como tem acontecido em casos recorrentes.
Logo, é parcialmente inconstitucional o art. 99 da Lei Complementar nº 80/94 por extrapolar o termo “normas gerais” previsto no art. 134, § 1º, e o pacto federativo (arts. 25 e 60, § 4º, I) ambos da CF, bem como é inconstitucional a ADIN, a qual pode ser ajuizada no STF por Governador do Estado, pela Mesa da Assembleia do Estado, pelo Procurador Geral do Estado, Partido Político, Presidente da República, pela Mesa do Legislativo Federal, pela OAB, ou por associação de classe de Âmbito nacional, pois cabe a cada Estado definir a norma específica para escolha do Defensor Geral.
André Luis Alves de Melo é Promotor de Justiça, Mestre em Direito Público e Professor Universitário.
 Fonte: DIALEX

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