A chegada dos médicos cubanos ao Brasil tem gerado uma série de questionamentos, tanto sobre a legalidade da presença desses profissionais no país, quanto sobre a forma de pagamento adotada – repasse financeiro à Organização Panamericana de Saúde (Opas).
É preciso ver, antes de tudo, que os médicos cubanos não estão sendo propriamente contratados, nem estão aí para substituir os médicos brasileiros. Eles, na verdade, chegam na condição de intercambistas para, nos termos do acordo internacional firmado entre o Brasil e a Opas, participarem de processo de qualificação profissional, particularmente na área de atenção básica à saúde. Os intercambistas se submetem a um processo de capacitação, no qual, também atendendo às populações desassistidas, aprendem e, porque aprendem, ensinam. Haverá, aí, um diálogo entre referidos médicos e os profissionais de saúde brasileiros. Nesse processo, ganha a população hoje sem acesso ou com precário acesso às referidas prestações básicas de saúde.
Mesmo não contemplando forma ideal de remuneração, o acordo não configura terceirização de mão de obra, nem pode ser caracterizado como autorizando hipótese de trabalho escravo. Os médicos cubanos, porque trazidos por organização internacional para o atendimento de situação especial, não se submetem à legislação trabalhista do país. Não podem, portanto, ser comparados aos médicos brasileiros ou estrangeiros que atuam entre nós, sejam eles empregados, servidores públicos ou profissionais liberais. O acordo concluído com a Opas orienta-se no sentido de dar cumprimento ao disposto na Constituição de 1988 no que se refere ao direito fundamental à saúde, particularmente das populações mais desamparadas do país.
A situação dos médicos cubanos não deve ser muito distante daquela dos médicos residentes. São, nas relações que manterão com o Brasil, intercambistas e não, empregados. São, portanto, profissionais colocados à disposição de uma organização internacional por um país membro, no caso Cuba, sendo certo que referida organização, diante de acordo internacional, encarrega-se de trazê-los ao Brasil. Não há terceirização. O programa, repita-se, não supõe a substituição de médicos brasileiros. Também não há trabalho escravo ou análogo à condição de escravo. Os médicos receberão valores próximos, inclusive, aos pagos para outros profissionais de saúde brasileiros (não médicos), superiores às bolsas de residência e, mesmo, superiores, à remuneração paga aos médicos brasileiros por alguns estados da federação.
Faltam, é fato, médicos no Brasil, como comprovam os dados apresentados pelos Ministérios da Saúde e da Educação. Há mais de mil municípios sem nenhum profissional, o que demonstra a necessidade de criação de mais cursos de medicina, particularmente nas regiões Norte e Nordeste e, também, de mais vagas nas escolas de medicina já existentes. Isso tudo, evidentemente, sem descurar da qualidade dos cursos. Deve o Estado, também, levar condições adequadas ao exercício da medicina. Sem estrutura suficiente, tudo fica muito difícil. Os médicos brasileiros têm razão quando reclamam da precariedade dos equipamentos de saúde. Ou seja, o problema do país não será resolvido apenas com mais médicos, reclamando, mais do que isso, políticas públicas permanentes e arrojadas. O Estado brasileiro, ao que parece, finalmente, está acordando para isso.
Do pondo de vista estritamente jurídico, sem expressar nenhum juízo de valor a respeito da bondade da medida, cumpre reconhecer a possibilidade, sempre nos termos do acordo internacional referido e apenas para satisfação de seus objetivos, do exercício da profissão pelos médicos intercambistas sem a necessidade da submissão ao Exame Revalida. Basta a existência de lei ou ato normativo com força de lei dispondo nesse sentido. A condição especial desses profissionais justifica a circunstância. Sua permanência é por tempo limitado, com atuação circunscrita. Os aprovados no Revalida, ao contrário, exercerão a profissão de modo permanente. No caso dos médicos cubanos, há medida provisória, que no caso parece ser justificável, cuidando do assunto. Aliás, o legislador poderia mesmo, se assim recomendasse o interesse público, reconhecer automaticamente, para autorizar a prática médica no Brasil, os diplomas conferidos por universidades estrangeiras, de alguns países em especial, sem que isso, em princípio, configurasse inconstitucionalidade. Claro que o melhor caminho é a submissão dos estrangeiros a um exame prévio. Mas essa é uma questão que incumbe ao legislador decidir. A Constituição não cuida do assunto.
Por óbvio, a atuação dos médicos cubanos deve ser fiscalizada pelo Estado brasileiro, pela Opas e, em especial, pelos Conselhos Regionais e Federal de Medicina. Importa lembrar, por fim, que os conselhos não podem recusar o registro do médico intercambista, isso em virtude da existência de ato normativo, com força de lei, dispondo sobre a sua obrigatoriedade.
Clèmerson Merlin Clève, professor de Direito Constitucional da UFPR e da UniBrasil, é líder do Núcleo de Investigações Constitucionais e Teorias da Justiça da UFPR e vice-presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas.
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