sexta-feira, 24 de maio de 2019

Considerações iniciais sobre a Lei 13.827/2019 – Proteção à Mulher



Introduziu-se, na Lei Maria da Penha, o art. 12-C, nos seguintes termos: “art. 12-C. Verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes, o agressor será imediatamente afastado do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida: I – pela autoridade judicial; II – pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de comarca; ou III – pelo policial, quando o Município não for sede de comarca e não houver delegado disponível no momento da denúncia. § 1º. Nas hipóteses dos incisos II e III do caput deste artigo, o juiz será comunicado no prazo máximo de 24 (vinte e quatro) horas e decidirá, em igual prazo, sobre a manutenção ou a revogação da medida aplicada, devendo dar ciência ao Ministério Público concomitantemente. § 2º. Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida liberdade provisória ao preso.”

O propósito de conferir ao delegado de polícia a viabilidade de determinar algumas medidas de proteção à mulher ofendida por companheiro, namorado ou marido já foi tentada antes. Evitou-se a aprovação por se considerar que essa atividade seria privativa do juiz de direito.

A Lei 13.827/2019, entretanto, ultrapassou essa barreira e foi adiante. Admitiu que, verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física da mulher em situação de violência doméstica e familiar (ou de dependentes), o agressor poderá ser afastado imediatamente do lar, domicílio ou lugar de convivência (podendo ser um simples barraco embaixo de uma ponte) com a ofendida: a) pelo juiz (nenhuma polêmica); b) pelo delegado de polícia, quando o Município não for sede de Comarca, vale dizer, quando não houver juiz à disposição; c) pelo policial (civil ou militar), quando não houver juiz nem tampouco delegado disponível no momento da “denúncia” (entenda-se como fato ocorrido contra a mulher).

Teve a referida lei a cautela de prever a comunicação da medida ao juiz, no prazo máximo de 24 horas, decidindo em igual prazo, para manter ou revogar a medida, cientificando o Ministério Público. Nota-se a ideia de preservar a reserva de jurisdição, conferindo à autoridade judicial a última palavra, tal como se faz quando o magistrado avalia o auto de prisão em flagrante (lavrado pelo delegado de polícia). Construiu-se, por meio de lei, uma hipótese administrativa de concessão de medida protetiva – tal como se fez com a lavratura do auto de prisão em flagrante (e quanto ao relaxamento do flagrante pelo delegado). Não se retira do juiz a palavra final. Antecipa-se medida provisória de urgência (como se faz no caso do flagrante: qualquer um pode prender quem esteja cometendo um crime).

Em seguida, menciona-se, inclusive, a viabilidade de qualquer policial, civil ou militar, de fazer o mesmo, quando no local não existir nem juiz nem delegado. Ora, policiais devem prender em flagrante quem estiver cometendo crime; depois o delegado avaliar e, finalmente, o juiz dá a última palavra.

Não se fugiu desse contexto. Não visualizamos nenhuma inconstitucionalidade, nem usurpação de jurisdição. Ao contrário, privilegia-se o mais importante: a dignidade da pessoa humana. A mulher não pode apanhar e ser submetida ao agressor, sem chance de escapar, somente porque naquela localidade inexiste um juiz (ou mesmo um delegado). O policial que atender a ocorrência tem a obrigação de afastar o agressor. Depois, verifica-se, com cautela, a situação concretizada.

Argumentar com reserva de jurisdição em um país continental como o Brasil significaria, na prática, entregar várias mulheres à opressão dos seus agressores, por falta da presença estatal (judicial ou do delegado). O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana encontra-se acima de todos os demais princípios e é perfeitamente o caso de se aplicar nesta hipótese.

Afaste-se o agressor e, após, debata-se a viabilidade ou inviabilidade da medida. O delegado ou policial não está prendendo o autor da agressão, mas somente “separando” compulsoriamente a vítima e seu agressor. Uma medida de proteção necessária e objetiva.

Aliás, como tenho defendido, o delegado de polícia é um operador do direito concursado, preparado e conhecedor das leis penais e processuais penais. Por isso, pode, com perfeição, analisar a medida protetiva. Pode avaliar, ainda, se lavra ou não a prisão formal pelo auto de prisão em flagrante. E, também por isso, pode validar, em primeiro momento, a prisão em flagrante feita por policiais na rua. Eis por que a audiência de custódia significa uma dupla avaliação sobre a validade da prisão em flagrante (delegado e juiz). Por isso, a audiência de custódia não tem sentido, a nosso ver. O delegado valida o flagrante. Após, o juiz o aceita ou rejeita, sem necessidade de se inventar um juiz de custódia.

Por outro lado, a referida lei em comento, permite que o juiz, comunicado da medida em 24 horas, possa mantê-la ou afastá-la, como faz com o auto de prisão em flagrante.

Preocupação deve ser levantada no tocante ao parágrafo 2º do art. 12-C: “Nos casos de risco à integridade física da ofendida ou à efetividade da medida protetiva de urgência, não será concedida
liberdade provisória ao preso.” Mais uma vez, o legislador se mostra ingênuo ou totalmente desinformado. Muitos casos de afastamento do agressor se dão em relação a crimes de ameaça ou lesão simples, cujas penas são pífias. Como pode o magistrado ser proibido de conceder liberdade provisória nesses casos? Essa parte não encontra suporte constitucional, por ofender a proporcionalidade e a legalidade.

Finalmente, o registro da medida provisória (art. 38-A da Lei Maria da Penha)é salutar, permitindo um maior controle sobre as decisões tomadas em favor da mulher agredida.

A Lei 13.827/2019 produz um resultado positivo.

===================
Bacharel em Direito pela USP, onde se especializou em Processo. Livre-docente em Direito Penal, Doutor e Mestre em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Professor concursado da PUC-SP, atuando nos cursos de Graduação e Pós-graduação (Mestrado e Doutorado). Desembargador na Seção Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo. Atualmente um dos mais conceituados doutrinadores nas áreas do Direito Penal e Processo Penal, com mais de 40 obras publicadas.

*JusBrasil 24.05.2019

Nenhum comentário:

Enquanto houver Democracia, o Judiciário é a esperança

                                                                                                                                            ...