REFORMA PENAL FASCISTA IMPLODIRÁ PRESÍDIOS
Uma Comissão Especial de 11 Senadores aprovou, em 17 de dezembro de 2013, o Relatório Final do Senador Pedro Taques (PDT-MT), apresentado no dia 10 de dezembro, sobre o Projeto de Lei do Senado nº 236/12, que cuida do novo Código Penal. Procurou-se sistematizar em 355 tipos penais principais os mais de mil crimes hoje espalhados pelo Código de 1940 e em leis esparsas. Resta agora a apreciação do Plenário do Senado, para depois o texto ser enviado à Câmara dos Deputados.
VETO AO PROGRESSO
De plano, foram eliminados vários pontos progressistas aprovados pela Comissão de Juristas: (i) aborto nas 12 primeiras semanas da gestação, em razão da incapacidade psicológica da gestante de arcar com a gravidez; (ii) descriminalização da posse de drogas para uso pessoal; (iii) diminuição de penas nos delitos de furto e roubo etc. Na Comissão predominou, do ponto de vista ideológico, o pensamento dos conservadorismos e fundamentalismos religiosos (SANTOS, 2013, p. 65 e segs.), sociais (apartheid) e econômicos (KLEIN, 2008, p. 35 e segs.).
VIRTUDES E VÍCIOS
O novo texto tem suas virtudes: constitui uma tentativa hercúlea de sistematização da desorganizada legislação penal brasileira, o que é muito louvável; supre lacunas criminalizantes (terrorismo, enriquecimento ilícito, corrupção entre particulares, crimes cibernéticos, crimes contra a humanidade etc.) e descriminaliza centenas de crimes e contravenções penais. Mas, como toda obra humana, também conta com imperfeições (como o abandono errado da relação de causalidade). Dentre seus defeitos sobressai a ideologia fascista emergente da criminologia populista/midiática. Será considerado o Código Penal mais rigoroso (e desproporcional) de todos os tempos. Talvez essa seja mais uma marca do governo do PT (se o novo Código for aprovado e sancionado no seu Governo).
Os Códigos Penais de 1830 e 1890 eram humanizadores (tendencialmente civilizantes), em termos de penalidade. O rigorismo penal fascista, que começou com o Código de 1940, elaborado na ditadura do Estado Novo, encontrará agora o seu ápice celestial, sob as pulsões da mais hedionda de todas as criminologias (a populista/midiática), que é fruto de uma série de confluências ideológicas, nacionais e internacionais, que envolvem, sobretudo desde os anos 70 do século XX, os Estados policialescos norte-americano e brasileiro, o radicalismo cristão protestante bem como a doutrina do neoliberalismo econômico.1
Nas considerações finais do citado Relatório ficou esclarecido que:
- Há, no Substitutivo, 355 figuras típicas, sem contar causas de aumento ou diminuição ou tipos privilegiados ou qualificados integrantes do mesmo artigo.
- Desse total, existem 81 tipos penais cuja pena não excede dois anos, sendo, portanto, de menor potencial ofensivo. Em 7 deles há dispositivos de aumento ou qualificação que elevam a pena para a faixa seguinte.
- São 185 crimes os que, na figura básica, admitem o regime inicial aberto e a substituição por pena restritiva de direitos. Destes, 24 trazem dispositivos de qualificação ou de causa de aumento impeditivos desses benefícios.
- Há 126 crimes cuja pena máxima excede quatro anos, obstando o regime inicial aberto e a substituição por pena restritiva de direitos. Em 26 crimes desse grupo, há causas de aumento ou dispositivos de qualificação que elevam a pena para a faixa seguinte (igual ou maior do que oito anos).
- Há 45 figuras típicas cuja pena excede oito anos, sem contar tipos dos grupos anteriores que, em razão de causa de aumento ou qualificação, podem alcançar esse patamar. Portanto, conclui o Relatório, “não se trata de um texto encarcerador. Muito pelo contrário. 52% dos crimes admitem regime aberto e substituição da prisão por pena alternativa”.
A FALÁCIA DO NÃO ENCARCERAMENTO
Nada é mais falacioso e equivocado que essa afirmação de que o novo Código Penal não será encarcerador. Com ele, haverá a implosão do sistema carcerário, já cruelmente massificado entre os anos 1990-2012 (508% de aumento da população aprisionada). Somente de 2003 a 2012 tivemos 77% de aumento, chegando a uma taxa de 283 presos para cada 100 mil habitantes, com estimativa da população para 2012 de 193 milhões de habitantes, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O PCC nasceu (em 1992) quando o Estado policialesco paulista exterminou 111 presos na antiga Casa de Detenção em SP (que já não existe). É de se presumir que ele (ou outra entidade organizada, dentre as que dominam os presídios) manifeste algum tipo de resistência violenta ao draconianismo e despotismo carcerário do novo Código.
CRIMES LOTAM OS PRESÍDIOS
Quem conhece a realidade carcerária do País sabe que apenas 9 crimes são responsáveis pela quase totalidade dos aprisionamentos. Essa seletividade da atuação da Justiça penal aumentou ao longo dos anos de 2005 a 2011, de acordo com os dados divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional. O sistema penal foi feito para investigar e punir com prisão apenas alguns crimes (e alguns criminosos).
Os delitos de tráfico de entorpecentes (nacional e internacional), roubo (simples e qualificado), furto (simples e qualificado), homicídio (simples e qualificado), porte ou posse de arma, latrocínio, estupro (agora unificado ao atentado violento ao pudor), receptação e quadrilha ou bando (que agora se chama associação criminosa e crime organizado) que, em 2005 (acrescidos dos delitos de falsificação de documento e uso de documento falso), compunham 85% das prisões do Brasil, em 2011, passaram a compor 94%.
Basicamente, os mesmos delitos que mais encarceravam no ano de 2005 (responsáveis por 85% das prisões no País) continuam a dominar cada vez mais o Sistema Penal, já que em 2011 este percentual subiu para 94%. Significa dizer que enquanto 9 crimes aprisionam 94% do sistema penal, apenas 6% representam prisões por outros crimes. Todos esses crimes que mais superlotam os presídios, no novo Código Penal, tiveram tratamento mais duro (ou seja: vão encarcerar mais ainda, porque foi aumentado em todos eles o tempo de cumprimento da pena para o efeito da progressão).
FATORES DE IMPLOSÃO DO SISTEMA
Muitos fatores concorrerão para a implosão do sistema penitenciário, impondo-se destacar: (i) a criação de novos crimes (terrorismo, enriquecimento ilícito do servidor público, corrupção entre particulares, crimes contra a humanidade, crimes culposos gravíssimos, saque irregular de contas públicas, crimes cibernéticos etc.); (ii) o aumento de penas (homicídio – de 6 para 8 anos, no mínimo (são mais de 52 mil por ano); lavagem de capitais – pena até 18 anos; corrupção – de 4 a 12 anos); (iii) a facilitação para o processo criminal nos crimes de sonegação fiscal ou previdenciária e descaminho (aniquilando a Súmula STF nº 24); (iv) a perpetuação do critério confuso e potencialmente arbitrário para distinguir o usuário do traficante; e (v) a antecipação da consumação dos crimes patrimoniais etc.
Mas nada disso se equipara a duas tiranias (porque tirânica é toda pena desnecessária, dizia Montesquieu, recordado por Beccaria), que constituem os dois eixos centrais da lógica punitiva do novo Código: (i) o endurecimento brutal e desproporcional do sistema progressivo; e (ii) o alargamento absurdo e exagerado da lista dos crimes hediondos.
ENDURECIMENTO DA EXECUÇÃO DA PENA
Todos os crimes, especialmente aqueles do grupo mais encarcerador, terão endurecimento na execução penal (pouco importando se violentos ou não). Para a progressão de regime o preso deve cumprir (i) 1/4 da pena, se não reincidente em crime doloso (antes era 1/6); (ii) 1/3 da pena, se reincidente em crime doloso, se o crime for cometido com violência ou grave ameaça ou se o crime for contra a Administração Pública, a ordem econômico-financeira ou tiver causado grave lesão à sociedade (antes era um 1/6); (iii) 2/5, se condenado por crime hediondo; (iv) metade da pena, se o condenado for reincidente em crime praticado com violência ou grave ameaça à pessoa ou em crime que tiver causado grave lesão à sociedade (antes era um 1/6); e (v) 2/3 da pena, se reincidente e condenado por crime hediondo (antes era 3/5).
CRIMES HEDIONDOS
Esse ponto da Reforma Penal, um dos mais terroríficos, naquilo que agrava a execução da pena desnecessariamente (crimes não violentos), para além de tendencialmente implodir o sistema penitenciário, constitui o retrato fiel do neopunitivismo (neoinquisitorial) pregado pela criminologia populista/midiática.
Seria a mais draconiana inovação, não fossem as regras de fixação do regime inicial fechado (que também induzem ao encarceramento massivo) e a hedionda lista dos crimes hediondos, que abarca o homicídio qualificado, salvo quando também privilegiado, o latrocínio, a extorsão qualificada pela morte, a extorsão mediante sequestro, o estupro e manipulação ou introdução sexual de objetos, a epidemia com resultado morte, a falsificação de medicamentos e produtos afins, com resultado morte ou lesão corporal de terceiro grau, a redução à condição análoga à de escravo, a tortura, o terrorismo, o tráfico de drogas, salvo quando também privilegiado, o financiamento ao tráfico de drogas, o racismo, o tráfico de seres humanos, de órgão, tecido ou parte do corpo, a corrupção ativa e passiva, peculato e excesso de exação, os crimes contra a humanidade e o genocídio. Em todos os crimes hediondos a progressão só poderá ocorrer com o cumprimento de 2/5 da pena (primários) ou 2/3 (reincidentes).
Constitui erro crasso e pura demagogia eleitoreira relacionar como hediondos crimes não violentos. A corrupção, assim como os demais crimes decorrentes de fraude (não de violência), não deveriam jamais ser punidos com prisão, sim, com a pena de empobrecimento e ressarcimento do prejuízo causado.
BANALIZAÇÃO DO MAL
O eixo duro da Reforma Penal, constituído do agravamento do sistema progressivo, da fixação do regime inicial fechado e dos crimes hediondos, gira em torno da mesma lógica vingativa e supersticiosa do Malleus Maleficarum, de 1487 (o martelo das feiticeiras), com uma diferença: o sistema punitivo católico medieval acreditava na aberração das bruxas e do diabo, enquanto o sistema penal de 2013 acredita no mito e na superstição de que o endurecimento da pena diminui a criminalidade. Já fez isso, desde 1940, 150 vezes (foram 150 reformas do Código Penal, sendo 72% mais duras). Nenhum índice destes crimes diminuiu com tais reformas. Apesar dessa evidência palmar e mesmo não tendo como base qualquer estudo científico do efeito preventivo da política de mão dura, o legislador brasileiro mergulha profundamente nas crenças, falácias, mitos e superstições da criminologia populista/midiática, igualando-se nesse ponto ao homem das cavernas, que acreditava que possuía todos os animais pintados nas suas paredes.
OUTROS VÍCIOS
O texto final do novo Código Penal, ademais, comete um erro técnico/dogmático gravíssimo, ao supor que a teoria da imputação objetiva de Roxin (corretamente adotada) eliminaria a velha e boa relação de causalidade. Nada mais incorreto e absurdo. Uma coisa não elimina outra, visto que ambas ocupam espaços relevantes dentro da tipicidade formal e material.3 Ele permite, ademais, amplo alargamento da responsabilidade penal de quem podia agir e não agiu (fórmula aberta que possibilita a punição de todos os que estejam no campo fático do delito, sem nenhuma adesão subjetiva). Na criminalidade econômica, por exemplo, será possível criminalizar todos os que se situam na área da compliance e não tenham evitado o crime. Estamos diante de uma responsabilidade penal genérica e deslizante (que abarca o criminoso bem como todos os que estão envolta dele). Também é um erro a adoção da responsabilidade “penal” da pessoa jurídica nos crimes contra o meio ambiente, a ordem econômico-financeira e a Administração Pública, títulos que somam mais de uma centena de tipos penais. As multas previstas, desproporcionais, podem significar o fim da empresa. O Projeto ainda cria a figura de pescar cetáceos e chega a cominar pena de até oito anos para quem coloca galos para brigar, causando a morte do animal. Oito anos é a pena mínima do homicídio! Restringe a aplicação da insignificância em relação aos reincidentes (isso é puro Direito Penal de autor, que viola o Direito Penal do fato). Acertadamente mantém a descriminalização da ortotanásia.
PENA É VINGANÇA
Como bem diz o Relatório citado, “o Direito Penal, conforme já percebeu o Sociólogo Émilie Durkheim, mexe com o que há de mais passional no ser humano”. Ele lida com seus tabus assim como com o seu desejo ardente de vingança. Para Durkheim, não importa o tempo histórico, o Direito Penal foi e é ainda hoje vingança social. A pena no Direito Penal moderno continua sendo uma resposta a uma necessidade de vingança: “a pena permaneceu, para nós, o que era para nossos pais: ainda é um ato de vingança, já que é uma expiação”. O que vingamos, o que o criminoso expia, é o ultraje à moral, escreveu Durkheim em seu célebre Da divisão do trabalho social (2008, p. 60).
A pena continua sendo uma reação passional, apesar de, hoje, ter intensidade graduada em relação aos séculos passados. A Reforma Penal que ora se desenha é fascista naquela parte que agrava as penas ou sua execução desnecessariamente (Montesquieu e Beccaria diriam tirânica). Isso decorre da preocupação do Congresso Nacional de atender aos “anseios sociais” sem discernimento, o que pode até significar fartos ganhos eleitorais, mas não o isenta de ser inscrito no index da história macabra dos fascismos penais.
Luiz Flávio Gomes
Diretor-Presidente do Instituto Avante Brasil. Estou no professorLFG.com.br.
Revista Jurídica Consulex nº 407
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