A democracia e a sua defesa pela concertação política
A atual conjuntura política do Brasil
aponta o caminho de uma necessária e urgente concertação política em defesa da democracia como saída ao impasse
a que estamos sendo conduzidos e, em breve, mergulhados no risco de rupturas institucionais
violentas e irreversíveis, que é a questão central e a ameaça maiores neste
momento. Trilhamos para uma situação em que a disputa política na sociedade,
cada vez mais criminalizada, judicializada e espetacularizada pela grande
mídia, e num ritmo de radicalização, desconsiderando princípios e valores
democráticos fundamentais, podendo descambar em violência aberta e destrutiva. A
sociedade brasileira tem muito a perder com o grave e sério risco de destruição
da democracia, pela qual lutamos e penamos muito.
A crise de hegemonia em curso, onde
as denominadas forças políticas dominantes do país não possuem a capacidade de
formular projetos e apontar rumos claros seguros para a sociedade,
transforma-se em conflito entre elas, deixando de ser em torno de visões,
ideias e valores, de representação de imaginários mobilizadores na sociedade
sobre o que somos hoje e desejamos ser amanhã. Partidos políticos de todas as
matizes deixaram de ser instrumentos de representação, mesmo que mantendo suas
nomenclaturas; e se tornaram federações negocistas de interesses privados e
agremiações para manter posições e tirar vantagens materiais do poder estatal. Encontramo-nos
diante de oportunismos de lideranças muito pequenas, sem a menor visão de um
horizonte, que não seja a sua própria sobrevivência, como se a representação
política significasse somente um bom emprego cercado de benesses asseguradas
pelo poder estatal. As raras exceções a tudo isto, e elas ainda existem, sendo pessoas
de estatura moral e política, que de fato são representantes, mesmo se
discordamos delas, não conseguem se contrapor a essa quadratura efervescente da
realidade política brasileira. A falta de critérios morais na criação de
partidos políticos é o maior sintoma da desmoralização e privatização do espaço
da política como um bem comum democrático fundamental. O deslocamento da arte política
do Congresso e do Executivo para o Poder Judiciário é a metástase de um câncer
que se generaliza pelos galhos da estrutura do poder tripartido.
Crise de hegemonia política, ao ser
reconhecida, não é desconhecer a existência da força dos poderes. Eles (poderes)
estão aí, por trás de tudo. São os tais 1% que dominam, os que dominam os 99%
restantes, seja na agricultura com o agronegócio, na mineração, na indústria ou
no comércio. Mas é nas finanças e no seu complexo de cassinos interligados, do
plano nacional ao internacional – bancos privados, bolsas de valores, agências
de avaliação de risco, instituições financeiras multilaterais – onde a
concentração é absoluta, pode chegar a algo próximo a 0,1%, que o poder é quase
total. Esta é a real situação sentida, mas dissimulada, onde o absolutismo do
capital econômico e financeiro, com seu punhado de corporações globalizadas,
está atrás de tudo e, como os tentáculos de um polvo,
domina o próprio planeta.
Não se pode olvidar de que a
democracia é de gente – onde cada cidadã ou cidadão deve valer igualmente na
balança do poder – ela, como projeto mobilizador, tende a equalizar, pela
política, a dissimetria das relações na estrutura social gerada pela economia.
As realidades históricas expressam as minúsculas possibilidades e os grandes
limites para a democracia. Por
definição, a democracia tem a ver com o poder. Cuida-se de um processo em
permanente disputa, baseado em iguais direitos e responsabilidades cidadãs no
sentido de criar cada vez mais e mais igualdade em termos políticos para, por
conseguinte, mudar as leis férreas da economia e da sociedade que levam à
desigualdade e exclusão, à discriminação e dominação permanente em nome da
exploração econômica e social das maiorias marginalizadas.
No Brasil, neste calor político de 2022,
devemos lembrar aos preguiçosos mentais (não estudam e não conhecem a História)
que, duramente reconquistamos a democracia há 37 anos, depois de uma perigosa
ditadura militar de mais de duas décadas. Assim mesmo a democracia tem sido,
até aqui, mesmo acanhada, uma porta de libertação de poderosas forças
construtivas de outra sociedade que desejamos. No processo de democratização
tivemos muitas conquistas, ainda pequenas, vistas de uma perspectiva de
cidadania planetária, como resultado do ativismo político de que “outro mundo é
possível”. Mas seria faltar à verdade histórica não reconhecer que a democracia
permitiu ao Brasil mudar para melhor. Há muito, muitíssimo por fazer. Mas não
dá para jogar fora as conquistas fundamentais, num país cuja matriz de
nascimento para a modernidade foi a “casa grande e senzala”. Pois bem, o que
fizemos nesses mais de trinta anos de democratização é maior do que o feito em mais
de 500 anos de conquista, destruição de povos indígenas e colonização, de
escravidão e subserviência aos imperialismos de plantão. Ainda não mudamos de
ponta a cabeça, mas estamos esticamos a corda para buscar e tentar outros
caminhos. Nesse caminho não conseguimos todas as metas traçadas, de fato, só
abrimos a picada que poderá virar estrada iluminada lá adiante. O pouco feito,
porém, tem algo de pedra fundamental de outra coisa. A nossa geração, tendo
passado o que passou, dá para festejar este pouco como outro caminho iniciado.
É o legado que deixaremos para os nossos filhos e netos.
O grande problema é que a conjuntura
em que nos encontramos agora parece colocar tudo a se perder. A nossa
democracia perdeu força e virou de baixa intensidade. O que passou já se foi, devemos
olhar e caminhar para frente e reinventar a democracia. Cuidemos com todas as
nossa atenções dela (democracia), ela que é ainda uma planta frágil! Talvez possamos
sentir uma espécie de trauma de guerra. Tenhamos traumas, sim, mas é da
ditadura militar brasileira, que quase matou nossos sonhos de liberdade e
igualdade. E mais: nos orgulhemos da conquista da democracia no Brasil, onde a nossa
geração teve um papel de protagonismo. Perdê-la é o trauma pessoal, daqueles
que provocam colapso irreversível. Politicamente, perder a democracia será um
retrocesso em direção à “casa grande e senzala”.
Não é nenhuma paranoia falar que a
questão maior do momento brasileiro seja a de destruição da democracia. O problema
deixa de ser de quem ganha ou pode perder no imediato da disputa política.
O centro crucial é que todas e todos perdemos se cairmos na perversa lógica de “nós e eles”, de “amigos x inimigos”, como os últimos acontecimentos dão os sinais
de que esta é uma possibilidade real. A alternativa a tal polarização e ao
potencial de grande destruição que carrega é criar pontes democráticas de
diálogo para, colocar nesse centro o bem maior: a democracia como método de
solução do impasse atual. Não é uma solução para a crise de hegemonia, mas é a
condição indispensável para que ela possa ser construída e o Brasil voltar a
ter um projeto que nos una em nossa diversidade e permita que a disputa
democrática – ou luta de classes na e pela política, se preferirem – volte a
ser novamente força de construção. Isto significa um pacto concertado
pela democracia, pela recriação de condições políticas para que a disputa entre
nós seja construtiva, baseada em princípios e valores democráticos como
fundantes’.
Destaca-se que, o elemento estratégico
e o mais difícil, é criar condições para que aconteça a necessária e contundente
defesa da democracia, não se trata de conciliação de interesses pelo alto, num toma lá e dá cá, que paralisa e congela
o status quo em favor dos “donos” do poder e, a seu modo,
destrói a democracia. Trata-se de reafirmar princípios e valores comuns e, nessa
perspectiva, pôr as cartas na mesa, com a anuência de todo mundo cedendo para
todo mundo ganhar em termos de futuro. Concertar é, por definição, reafirmar o
método democrático como o melhor caminho para solucionar os impasses do
presente, solidificando-se as colunas de segurança do ambiente da democracia
para o futuro do nosso Brasil.
No universo da problemática, é que a concertação exige, de um lado, recolocar a democracia no centro como o imaginário, como projeto, como base para o país. De outro, exige a emergência de líderes e forças dispostas a isto. Estamos diante de um problema que necessita de campanhas cívicas, tipo as “diretas já” ou da anistia geral e irrestrita, e a da criação de lideranças novas. Talvez este segundo aspecto seja o mais difícil, pois se trata de reconhecer a legalidade dos representantes eleitos e ao mesmo tempo de não ver neles a legitimidade para conduzir o processo deste momento. Ficar dependentes deles é conciliação ocasional. Mas para haver a necessária e urgente concertação em defesa da democracia, os eleitos, mesmo sem legitimidade, precisam aderir. Existirá sempre uma fração de forças na sociedade, nos extremos, que jamais vai aderir a um pacto assim proposto. O pacto é, exatamente, uma forma de isolar os falcões da política, sejam eles quais forem. Mas será que nós, da cidadania em frangalhos, deste país cheio de vida em meio à crise, estamos prontos a encarar tal desafio e criar, nas ruas, o espaço instituinte e constituinte onde poderemos exercer plenamente a cidadania com a excelência das condições para uma grande concertação nacional, em defesa e salvação da Democracia? Por onde começar?
Petrônio Alves
Advogado e Jornalista
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